Três letras, um número, uma faca e uma ponte de pedra: como uma equação talhada mudou a história da matemática

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Três letras, um número, uma faca e uma ponte de pedra: como uma equação talhada mudou a história da matemática

Neste artigo, uma professor de matemática explica como uma gravação em uma ponte mudou a forma como os matemáticos representam informações. Uma placa na Broome Bridge, em Dublin, homenageia o matemático William Rowan Hamilton (1805-1865), que gravou na pedra com seu canivete aquela que seria uma importante descoberta.
William Murphy/Flickr
Em 16 de outubro de 1843, o matemático irlandês William Rowan Hamilton (1805-1865) teve uma epifania durante uma caminhada ao longo do Royal Canal de Dublin, na Irlanda. Ele ficou tão empolgado que pegou seu canivete e gravou sua descoberta ali mesmo, na Broome Bridge.
Esse é o talho mais famoso da história da matemática, mas parece bastante despretensioso:
i ² = j ² = k ² = ijk = –1
No entanto, a revelação de Hamilton mudou a forma como os matemáticos representam as informações. E isso, por sua vez, simplificou inúmeras aplicações técnicas – desde o cálculo de forças ao projetar uma ponte, uma máquina de ressonância magnética ou uma turbina eólica, até a programação de mecanismos de busca e a orientação de um veículo espacial em Marte.
Então, o que significa esse famoso grafite?
Objetos em rotação
O problema matemático que Hamilton estava tentando resolver era como representar a relação entre diferentes direções no espaço tridimensional. A direção é importante na descrição de forças e velocidades, mas Hamilton também estava interessado em rotações em 3D.
Os matemáticos já sabiam como representar a posição de um objeto com coordenadas como x, y e z, mas descobrir o que acontecia com essas coordenadas quando você girava o objeto exigia uma geometria esférica complicada. Hamilton queria um método mais simples.
Ele foi inspirado por uma maneira notável de representar rotações bidimensionais. O truque era usar os chamados “números complexos”, que têm uma parte “real” e uma parte “imaginária”.
A parte imaginária é um múltiplo do número i, “a raiz quadrada de menos um”, que é definida pela equação i² = -1
No início do século XIX, vários matemáticos, incluindo o suíço Jean Argand (1768-1822) e o húngaro John Warren, (1903-1957) descobriram que um número complexo pode ser representado por um ponto em um plano.
Warren também demonstrou que era muito simples girar uma linha em 90° nesse novo plano complexo – como girar o ponteiro do relógio de 12:15 para 12:00 horas. Pois é isso que acontece quando você multiplica um número por i.
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Hamilton ficou muito impressionado com essa conexão entre números complexos e geometria, e começou a tentar fazer isso em três dimensões. Ele imaginou um plano complexo, com um segundo eixo imaginário na direção de um segundo número imaginário j, perpendicular aos outros dois eixos.
Foram necessários muitos meses árduos para que ele percebesse que, se quisesse estender a magia rotacional 2D da multiplicação por i, precisaria de números complexos quadridimensionais, com um terceiro número imaginário, k.
Nesse espaço matemático 4D, o eixo k seria perpendicular aos outros três. Além de k ser definido por k² = -1, sua definição também precisava de k = ij = -ji. (A combinação dessas duas equações para k resulta em ijk = -1).
Juntando tudo isso, obtém-se i² = j² = k² = ijk = -1, a revelação que atingiu Hamilton como um raio na Ponte Broome.
Quaterniões e vetores
Hamilton chamou seus números 4D de quaterniões e os usou para calcular rotações geométricas no espaço 3D. Esse é o tipo de rotação usado, atualmente, para mover um robô, por exemplo, ou orientar um satélite.
Mas a maior parte da magia prática surge quando se considera apenas a parte imaginária de um quaternião. Isso é o que Hamilton chamou de “vetor”.
Um vetor codifica dois tipos de informações de uma só vez, sendo a mais famosa, a magnitude e a direção de uma quantidade espacial, como força, velocidade ou posição relativa. Por exemplo, para representar a posição de um objeto (x, y, z) em relação à “origem” (o ponto zero dos eixos de posição), Hamilton visualizou uma seta apontando da origem para a localização do objeto. A seta representa o “vetor de posição” x i + y j + z k.
Os “componentes” desse vetor são os números x, y e z – a distância que a seta percorre ao longo de cada um dos três eixos. (Outros vetores teriam componentes diferentes, dependendo de suas magnitudes e unidades).
Meio século depois, o excêntrico telegrafista inglês Oliver Heaviside (1850-1925) ajudou a inaugurar a análise vetorial moderna ao substituir a estrutura imaginária i, j, k de Hamilton por vetores unitários reais, i, j, k. Mas, de qualquer forma, os componentes do vetor permanecem os mesmos e, portanto, a seta e as regras básicas para multiplicar vetores também permanecem as mesmas.
Hamilton definiu duas maneiras de multiplicar vetores. Uma produz um número (hoje chamado de produto escalar ou ponto) e a outra produz um vetor (conhecido como produto vetorial ou cruzado). Essas multiplicações aparecem hoje em uma infinidade de aplicações, como a fórmula da força eletromagnética que sustenta todos os nossos dispositivos eletrônicos.
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Um único objeto matemático
Sem o conhecimento de Hamilton, o matemático francês Olinde Rodrigues (1795-1851) havia criado uma versão desses produtos apenas três anos antes, em seu próprio trabalho sobre rotações. Mas chamar as multiplicações de Rodrigues de produtos de vetores é uma visão retrospectiva. Foi Hamilton quem uniu os componentes separados em uma única quantidade, o vetor.
Todos os outros, de Isaac Newton (1643-1727) a Rodrigues, não tinham o conceito de um único objeto matemático que unificasse os componentes de uma posição ou de uma força. [Na verdade, havia uma pessoa que tinha uma ideia semelhante: um matemático alemão autodidata chamado Hermann Grassmann (1809-1877), que inventou independentemente um sistema vetorial menos transparente na mesma época que Hamilton].
Hamilton também desenvolveu uma notação compacta para tornar suas equações concisas e elegantes. Ele usou uma letra grega para denotar um quaternião ou vetor, mas hoje, seguindo Heaviside, é comum usar uma letra latina em negrito.
Essa notação compacta mudou a forma como os matemáticos representam as quantidades físicas no espaço 3D.
Tomemos, por exemplo, uma das equações do físico e matemático escocês JJames Maxwell (1831-1879) que relacionam os campos elétrico e magnético:
∇ × E = –∂B/∂t
Com apenas alguns símbolos (não entraremos nos significados físicos de ∂/∂t e ∇ ×), isso mostra como um vetor de campo elétrico (E) se espalha pelo espaço em resposta a mudanças em um vetor de campo magnético (B).
Sem a notação vetorial, isso seria escrito como três equações separadas (uma para cada componente de B e E), cada uma delas um emaranhado de coordenadas, multiplicações e subtrações.
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O poder da perseverança
Escolhi uma das equações de Maxwell como exemplo porque o peculiar escocês James Clerk Maxwell foi o primeiro físico importante a reconhecer o poder do simbolismo vetorial compacto. Infelizmente, Hamilton não viveu para ver o endosso de Maxwell. Mas ele nunca deixou de acreditar em sua nova maneira de representar quantidades físicas.
A perseverança de Hamilton diante da rejeição da corrente dominante realmente me comoveu quando eu estava pesquisando meu livro sobre vetores. Ele esperava que um dia – “não importa quando” – ele pudesse ser agradecido por sua descoberta, mas isso não era vaidade. Era empolgação com as possíveis aplicações que ele imaginava.
Ele ficaria muito feliz com o fato de os vetores serem tão amplamente utilizados atualmente e de poderem representar informações digitais e físicas. Mas ele ficaria especialmente satisfeito com o fato de que, na programação de rotações, os quaterniões ainda são frequentemente a melhor opção – como sabem os programadores da NASA e de computação gráfica.
Em reconhecimento às conquistas de Hamilton, os fãs de matemática refazem sua famosa caminhada todo dia 16 de outubro para comemorar o Hamilton Day. Mas todos nós usamos os frutos tecnológicos desse grafite despretensioso todos os dias.
*Robyn Arianrhod é afiliada da Escola de Matemática da Monash University.
**Este texto foi publicado originalmente no site da The Conversation Brasil.
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